domingo, 26 de abril de 2015

Considerações sobre a burocracia do Estado pós-64

Acompanhei com interesse o aniversário de uma das efemérides mais complexas da história do país, que foi o aniversário, no ano de 2014 dos 50 anos do golpe militar que depôs o então presidente João Goulart.
Foi um momento delicado, devido a manifestações contra e a favor, e também ao inventário histórico do período, mas faço aqui uma reflexão sobre a influência de um ponto especifico do movimento de 64.
A raiz deste questionamento é o fato de que o Exército Brasileiro não se posicionou como unidade de imediato a favor da deposição do então presidente João Goulart. Na realidade, as tensões dentro da caserna pré-64 não permitiram uma adesão em massa à causa que nasceu no seio da classe média e das então “classes produtoras”, com a coordenação política da UDN, pois as Forças Armadas, com o Exército em destaque, eram um poço de indisciplina em tempo integral desde a revolução de 1930, que foi feita a base de insubordinação das patentes mais baixas (representada pelos “tenentes”), coordenada com os alijados do processo decisório da República Velha (a nova classe média urbana e alguns oligarcas preteridos), que acabaram empurrando a oficialidade superior para o movimento de 3 de outubro de 1930, com a chegada de Getulio Vargas ao poder.
A partir daí, houve rupturas de hierarquia e disciplina em 1932, 1937, 1945, 1954, 1955, 1961 e culminando com 1964, sempre com indisciplina e quebra de hierarquia.  Nesse intervalo, alguns dos militares que se tornaram mandatários do novo regime haviam conspirado em tempo integral, e aqueles que se dispuseram a ser apenas militares, seguindo integral e fielmente os rígidos códigos de hierarquia e disciplina, foram alijados do centro das decisões, quando não imediatamente reformados.  Nessa decisão de caráter supostamente unificador, criou-se um problema para o novo regime: com total aversão aos políticos tradicionais (a quem jocosamente  chamavam de “casacas”, termo em uso desde a República Velha) e articulando apenas com poucos elementos civis interessados na queda da velha ordem varguista ou com interesses pessoais mais urgentes e eleitoreiros, com perigo de perder a proeminência num movimento que eles achavam que lhes pertencia desde  1954, a única saída que se colocou para os militares foi romper o acordo com os civis, que já nascera frágil e endurecer o regime, o que provocou além dos devidamente conhecidos efeitos (suspensão do funcionamento do legislativo, supressão das liberdades civis, entre outros), e ocupar com a oficialidade diversos cargos em carreiras de Estado, em detrimento de funcionários públicos de carreira, tendo como alvo principal os que eram vistos como comunistas ou participantes da velha ordem. Essa ocupação de espaços não se fez por mérito ou competência, mas sim por lealdade e identificação com os ideais da “revolução”. Se a intenção primordial era a limpar a coisa pública, ao que parece, o efeito foi,  além de inverso,  ampliar o já conhecido clientelismo e aparelhamento estatal, triste costume herdado do nosso modelo de Estado, patrimonialista português, que remonta ao descobrimento e da qual não conseguimos nos livrar nem durante a redemocratização, e que perdura até hoje, pois o regime nunca alcançou a homogeneidade imaginada por seus realizadores. Um exemplo prático dessa postura eram os serviços de informação, onde cada Força tinha o seu, e ainda havia um serviço nacional, o famigerado e temido SNI . Embora homens brilhantes tenham colaborado numa necessária reforma imediata do sistema financeiro (como os professores Gouvêa de Bulhões e Mário Henrique Simonsen), por exemplo, o aparelhamento militar estatal legou ao país uma coleção de erros que atrasaram nosso desenvolvimento,em parte devido ao aparelhamento burocrático feito a base apenas de identificação com o regime e importando junto toda a indisciplina e desconfiança vigente na tropa há mais de 30 anos, sendo equívocos citáveis:o protecionismo econômico, o intervencionismo estatal e o centralismo no planejamento, não permitindo a criação de um pacto federativo mais arejado e condizente com  a interiorização do Brasil. São males as quais o país ainda está exposto e que depõem com números (taxas de crescimento econômico e indicadores sociais medíocres) contra a santificação, por parte de alguns saudosos e outros neófitos, do movimento militar de 1964. Não houve aprimoramento das instituições públicas nem da iniciativa privada. Os problemas internos dos grupos militares e sua maneira de conduzir a administração federal levaram a um Estado engessado, clientelista e desconfiado, beirando a paranóia. Nem o crescimento galopante do “milagre econômico” salvou o estrago e no fim, depõe contra si mesmo, pois além de ter vida curta, ajudou a concentrar a renda dos mais ricos em detrimento dos mais pobres, uma armadilha econômica que ainda sofremos para desarmar.


A Alma e o Deserto

“Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”
“Na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri.”
(Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia, 1942-1988)

Com seu espírito amalucado e contestador, Tim Maia viu como poucos além das aparências e desnudou a alma do país. Frasista inspirado e compositor significativo deixou um legado de compreensão a respeito de como se sentem e como pensam em privado os brasileiros. Ou melhor, não pensam. Nada que já tenha sido escrito a respeito, prepara o observador do nosso tempo para o que ele vê, ou não vê, nos dias atuais. Pra onde se olhe, há uma figura incompleta esperando uma definição do que ela seja ou virá a ser.
Somos um país indefinido. Não sabemos bem o que somos e nem o que queremos ser. Levamos a vida ao vento, ao sabor dos acontecimentos, esperando sempre que alguém resolva nossos problemas por nós, ou esperando que alguém sofra uma perda pra ocuparmos o lugar. Não uso o termo “perda” de forma específica, pois na terra do “jeitinho”, ela pode ser de qualquer natureza, contanto que alguém perca, e eu me locuplete.  Não existe em escala a pretensão de construir, e sim a de esperar a destruição, e se for algo que nos atinja, que alguém coloque algo no lugar, para podermos recomeçar o ciclo “vida mansa-inveja-destruição do semelhante” novamente.
Abominamos o confronto como forma de resolução de problemas e desconfiamos da livre iniciativa, olhando a pessoa que a tenha com um misto de pena e –novamente- inveja, admirando seu sucesso, mas esboçando um meio sorriso com sua derrocada.  Pra que tanto esforço? Eu vivo a vida que me permitem e estou aqui, vivo – mas não necessariamente realizado e feliz. A restrição ao confronto de idéias faz com que sejamos um povo dissimulado aos olhos de quem nos visita de fora, ou apenas incompreensível. Um povo que se utiliza de subterfúgios para obter o que quer, e que tem um prazer patológico em apontar defeitos alheios.
Um país com essa dinâmica não tem como dar certo, se esperamos que uma entidade etérea, que materializamos na figura do Estado, embora a maioria de nós não consiga enxergar dessa forma, resolva nossa vida. Falta compreensão e discernimento. O governo tem de me dar saúde e educação. Emprego? Tem de dar. Mas não sabemos como. Transporte também. Desde o coletivo e até o individual (!!). Sim, eu quero meu carro, que eu vou ter de financiar a juros de agiota, gastar com gasolina, manutenção, seguro, ficar preso em congestionamento e não ter onde estacionar - mas o governo, essa entidade indefinível, tem de me dar.  A iniciativa individual é morta entre nós, um cadáver insepulto, o bode na sala. “Eu faria as coisas por mim mesmo, se o governo me desse condições... mas como ele não me dá, vivo com o que ele me dá.” E o que ele dá? Bolsas em universidades particulares de ensino duvidoso, preservando com esse processo danoso as vagas disputadas no ensino público superior para o topo da pirâmide, aqueles que têm condições de estudar nos melhores colégios particulares, uma inversão de valores que eu considero criminosa. Médicos estrangeiros trabalhando em regime de semi-escravidão, que não conhecem febre maculosa e outras doenças sem paralelo no país de origem da maioria, tidos como milagreiros nos grotões porque são obrigados a trabalhar onde os médicos locais não trabalhariam por falta de condições. Cuidam de gente tão carente que dão graças a Deus até em erro médico. Distribuindo dinheiro para famílias se perpetuarem na miséria, sem uma alternativa que poderia ser, ora, ora, o ensino e difusão da livre iniciativa, tão longe da alma de nosso povo e execrada pela classe política em larga escala, pois, habituados a ela, as pessoas poderiam traçar paralelos perigosos entre certas atitudes dos governantes e a verdade simples, de como as coisas deveriam ser. Um povo que se deixa levar porque não tem a quem recorrer. Justiça? Conceito abstrato que na cabeça do cidadão comum se define por “prender e soltar os ricos, prender os pobres e demorar pra soltar, se soltar e demorar pra resolver qualquer coisa” qualquer demanda que a ela se apresente, desde pensão alimentícia até roubo de milhões. As iniciativas no sentido de entender a situação geral acabam sendo eclipsadas pelo deserto cultural a que somos expostos onde, mais importante que acompanhar um projeto de lei sobre saúde e educação, é a separação escandalosa do casal do momento. Momento este onde acaba estourando também o novo escândalo político, e nós, já anestesiados, apenas balançamos a cabeça e dizemos “mais um”, sem indignação, apenas conformismo.
Entre abril e junho de 2013, este estado de coisas sofreu um soluço, da qual eu particularmente imaginava que seria apenas isso mesmo, um soluço. A causa inicial era muito frágil na essência, um aumento em valores absolutos irrisório no preço dos transportes, mas que atraiu centenas de milhares nas ruas, num sentimento difuso de inconformismo e cansaço moral. Mas o fracasso era certo porque, mais uma vez, cobramos tudo de alguém, sem verificarmos qual a parte nos cabia. Foram cobrados hospitais e melhora na saúde, mas só vamos ao médico quase em risco de vida, podendo ser já numa fase em a doença é dolorosa, difícil e custosa. Cobramos melhor uso do dinheiro dos impostos apenas para que o smartphone do momento ou o carro desejado custem mais barato, não para que um uso racional do dinheiro público permita também a criação de condições econômicas melhores, gerando possibilidade de melhoria na educação, criação de empregos mais qualificados e mais bem remunerados. Nessas condições, atendidas as demandas mais visíveis, em decisões rasas e populistas, houve uma acomodação previsível do movimento.
E voltamos ao início. Pedimos e não nos mexemos mais. A classe política se acomodou nas mesmas condições anteriores, e maneja como títere a massa semipolitizada, que volta ao estado inicial de “deseja-inveja-alguém tem de me dar porque eu me mato de trabalhar”. É uma corrida de ratos, da qual não nos livraremos, porque mais que falta de educação ou cultura, é a alma de um povo que gosta de constar como alegre e receptivo, mas que no fundo é apenas acomodado e invejoso. Não tem como dar certo.
Lembrem-se do síndico: “Na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri.”